Corpo tradutor, corpo traduzido em Emily Dickinson
Michael A. Soubbotnik - Universidade Paris-Est, EA 4120 LISAA (Littératures, Savoirs et Arts)
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Introdução Será que atribuir uma função eminente ao corpo na poética de Emily Dickinson é um paradoxo? Na constelação das estrelas da “Renascença Americana”: Emerson, Thoreau, Hawthorne, Melville, Whitman e Dickinson3, Walt Whitman é o poeta do corpo – ele mesmo é que o diz – e, apesar de tantos anos de pesquisa, Emily permanece “o Mito” descrito a Mabel Loomis Todd, sua futura editora, na sua chegada em Amherst: uma solteira esdrúxula sempre vestida de branco, conversando com hospedes atrás da porta entreaberta de seu quarto e, por assim dizer, desencarnada. A situação é clara: a poesia norte-americana moderna tem seu papai sensual e sensível e sua mamãe intelectual e pirada, seu corpo e sua alma, com papéis até mesmo quase politicamente corretos. Naturalmente, não é bem assim. Vejamos o primeiro terceto da secção 21 do Canto de Mim Mesmo de Walt:
Emily, claro, nunca se teria exprimido em sílabas tão numerosas e em uma sintaxe tão regular mas ela poderia ter assumido cada uma dessas reivindicações. O seu tom, porém, é bem diferente. À afirmação retumbante de Whitman: "eu sou o poeta do corpo e eu sou o poeta da alma" respondem4 as reticências de Emily no poema J1090/F1050:
Essa brevíssima comparação entre os dois gênios da poesia americana de língua inglesa deixa perceber o equívoco de opormos preguiçosamente uma “poesia da alma” em ED, a uma “poesia do corpo” em WW. Nem se trata principalmente do dualismo alma/corpo. Tal dualismo é um quadro conceitual de toda a literatura americana do período. É fundamental mas não é distintivo. Trata-se das formas que toma a tradução desse dualismo em uma “língua nova” para exprimir o que Whitman chama de “prazeres do céu” e de “dores do inferno”. Vamos considerar hoje a forma que lhe dá Emily. Transcendentalismo, realismo e puritanismo É preciso em primeiro lugar colocar Emily no momento bem particular da literatura norte-americana que ela compartilha com Whitman. Esse momento é aquele da transição entre o reino do transcendentalismo e a era do realismo. William Dean Howells, chamado “o Deão do realismo americano” (Dean = Deão) entra na comissão editorial do Atlantic Monthly, uma das revistas preferidas de Emily, em 1866 e torna seu redator-chefe em 1871. Escritores como Emerson, Thoreau, Hawthorne e Melville acreditavam todos, mesmo que de maneiras diversas, em uma “realidade superior” atingível pela literatura através das realidades mais comuns. A Natureza, escreve Emerson, é o “veículo do pensamento”:
Em Howells ou Mark Twain, a realidade comum opacifica-se e perde sua função simbólica. Leitora insaciável seguindo de perto no Atlantic Monthly e no Harper's Monthly as mudanças da literatura contemporânea, mas profundamente marcada também pela poesia de Emerson e a prosa de Thoreau, Emily não pertence nem à corrente transcendentalista nem ao realismo nascente. Mesmo que alternativamente herética, indiferente, anti-trinitarista ou simplesmente cética, Emily é e continua sendo uma puritana pela sua tensão introspectiva, sua “reticência”, pelo papel desempenhado na sua poética pelo paradoxo da Encarnação como “Verbo que se fez carne” e como Calvário, pela problemática da eleição e da reprovação, pela relação ao Deus da Bíblia (não a um “Espírito” emersoniano) e, em termos mais literários remetendo à tradição da retórica religiosa dos séculos 17 e 18, pelo senso agudo dos efeitos tremendos de cada palavra enunciada e até de cada sílaba proferida. Cada um desses aspectos assume um sentido completamente original em Emily, mas em cada um, a sua heterodoxia só faz sentido sobre o pano de fundo do pensamento e das paixões tradicionais do puritanismo da Nova Inglaterra bem mais que do racionalismo pragmático alternando com os “revivals” (revivescimentos) no Massachusetts antes da Guerra Civil. O Corpo e a PossibilidadeCom tudo isso na mente, compreende-se melhor a firmeza com que a dicção de Emily questiona as implicações transcendentes da linguagem que a submetem à tirania da autoridade divina:
“O Verbo fez-se Carne” é substituído por “Uma Palavra feita Carne”, a encarnação de um Verbo divino eterno é substituída pela encarnação de cada uma palavra nossa ao ser enunciada por nós. Assim, a temática da morte e da imortalidade, trazida de novo à imanência da nossa vida de seres falantes, encontrará, na “possibilidade”, à qual Emily identifica a poesia, sua tensão máxima. O corpo e as analogias relacionadas a ele são os operadores mais importantes nas transações entre as “personae” dos poemas e as “possibilidades” que definem a poesia para ED:
“Cada espírito”, Emerson escrevia em Nature, “constrói uma casa para si mesmo; e além da sua casa, um mundo; e além de seu mundo, um paraíso8”. Essa afirmação é, sim, um intertexto de “Moro na Possibilidade” mas no poema de Emily, se a descrição da Casa da Poesia torna-a pouco a pouco mais “celeste”, os dois últimos versos que tratam da atividade poética (e não mais de uma essência da poesia) substituem o “espírito” evocado por Emerson pelas as mãozinhas da poeta. Essa função operativa do corpo vem de seu estatuto ontológico exposto na primeira estrofe de J263/F293:
Mais uma vez, a expressão “a Alma/ Que representa a divindade” retém uma ressonância emersoniana. Mas o “slant”, o significado oblíquo, contido na palavra “representa”, que distancia a persona do poema dessa concepção da transcendência, é tipicamente disckinsoniano. Somos imediatamente reconduzidos à singularidade situada “sobre o meu lado do Véu”. A relação entre a alma da persona poética e o transcendente é estabelecida pelo corpo. A eventualidade de uma comunicação entre a alma da persona e a outra Alma, talvez divina, talvez pura representação imaginária, é descartada. O corpo é o tradutor entre as “possibilidades”, sendo traduzido na linguagem poética criada pela poeta. Porém, as possibilidades poéticas apresentam uma tensão interna entre dois “mundos possíveis9” que os tropos do corpo atuam. Segundo o primeiro tipo de possibilidade “O Paraíso é uma opção10”. Nesse contexto, cada palavra torna-se “vital” ao configurar as visões. Em vários poemas, essas últimas são metaforizadas pela abertura dos sentidos e a re-apropriação do corpo próprio pela persona, como em “Ouvia como se não tivesse Ouvidos”:
A “Palavra Vital” que vem “do fundo da Vida” não é transcendente. É palavra proferida:
Enquanto “palavra feita carne” (J1651 / F1715), ela pertence integralmente à imanência de nosso “acordo de Linguagem”, à “amada Filologia” da linguagem comum cujas palavras e, através delas, os objetos e atos do dia a dia, brilham como jóias. Numa carta dos anos 60 a Joseph Lyman, Emily escreveu: Pensávamos, Joseph, quando eu era uma mocinha mal refinada e você tão acadêmico, que as palavras fossem baratas e fracas. Agora não acho nada mais potente. Há aquelas para quem tiro o chapéu quando as olho sentadas como princesas na página. Às vezes escrevo uma e fico olhando seu contorno até que ela brilhe como nenhuma safira12. O Eu e o Corpo no poema citado trocaram as regiões espaciais que lhes são habitualmente atribuídas: o Eu não é mais a figura da interioridade em oposição a um corpo “exterior”. O corpo é “dentro”, o Eu é “fora”. Nem o corpo é o oposto do “Eu” ou mais exatamente de “Mim”, na medida em que se pode dizer que “Eu estou fora de Mim” enquanto o meu Corpo só está “dentro de Mim”, e que, ao contrário, a “Força” que me descobre, força de cada palavra “viva” ou “encarnada”, é, ao menos parcialmente, uma força que vem de Mim. Assim, a sintaxe (e até morfologia: I/Me, Eu/Mim) opera a separação do Eu de fora e do Eu de dentro. Pois a linguagem do poema é um “corpo-linguagem”, uma palavra comum encarnada que entra em comparação-competição com o “Verbo feito carne e habitando entre nós”. Na versão da sua história bíblica favorita – o combate de Jacó contra o Anjo – que Emily dá em cartas e poemas, Jacó é que abençoa o Anjo vencido. “O Poeta é um lutador”, escrevia. O poder, porém, de “morar na possibilidade” ou, na tradução corporal do “Parafuso de Carne”, de ter “Outras Mãos pra segurar” e “Mais um Nervo novamente trançado de aço”, é um poder de Visão mas também de Veto (J528/F411):
“Mine – by the Grave's Repeal”: a Revogação do Túmulo é um genitivo subjetivo. O segundo verso explica parcialmente o primeiro e explica também porque o momento da re-apropriação do Eu dentro do Corpo é o momento da virada do Espírito para a Poeira. Daí o medo (J1090/F1050):
já que a própria possibilidade de juntar, na possessão, um “dentro” e um “fora” por meio do “parafuso” da carne implica a precariedade e a morte (J1090/F1050):
Proferir o “Veto” significa não apenas recusar a “arca de segurança” proporcionada pelos revivals dos anos 50 ou a publicação a qualquer custo, mas também às vezes recusar a própria “Visão” poética13. Sendo também uma vivência da encarnação das palavras, o Veto que exprime a precariedade da “Possessão” do “Espólio” que chamamos de “Eu”, confirma ao mesmo tempo a legitimidade da palavra “Meu”, já que em “Publicar é o Leilão” (J709/F788): O Pensamento pertence Àquele que o deu – Pois – Àquele que porta A sua ilustração Corporal […] Isso indica que o Veto não é simplesmente um oposto da “Visão” e que o corpo traduz ambos. Só que, em primeiro lugar, se coloca a questão de agüentar a violência do êxtase epifânico, ou seja, a própria encarnação da palavra em sua própria vertente significante, material:
Em segundo lugar “A Ausência desencarna – assim faz a Morte” (J860/F904). Porque é mortal, O corpo pode fazer-se o tradutor do paraíso na língua deste lado do Véu e sustentar a própria tensão entre morte e imortalidade. Mas assim, como em “Só um parafuso de carne”, o “tenro – solene Alfabeto” que deve traduzir é “subtraído a [seu] olhar”. “E com que Corpo vêm?” pergunta o poema J1492/F1537 citando 1Cor. 15:35. Só uma imortalidade encarnada pode ser desejável; mas seu caráter inacreditável suscita o ceticismo. Violência, dor e ceticismo definem, então, um segundo domínio de possibilidades diretamente gerado pelo primeiro (aquele da Visão paradisíaca). “É difícil”, escreve Emily a Higginson em Junho 1869, “não ser fictícia em um lugar tão lindo” como o mundo extático da Visão; porém, acrescenta, “os reparos austeros da prova são permitidos – todos” (Carta 330). Muitas vezes, os reparos austeros da prova revelam que a possessão era fictícia, despertando a dor de “perder o que nunca possuímos”. Tal perda, “pode parecer […] esdrúxula mas a Presunção tem as suas Aflições tal como a Revindicação” (Carta 429 a Susan Gilbert, 187415) A falha da visão transcendente gera suas próprias visões e seus próprios êxtases. Aquelas da eternidade implicavam uma mudança adequada do corpo (J263/F293):
Não se trata aqui de um “corpo glorioso” mas do próprio corpo de barro que tem de enfrentar a promessa de imortalidade. Uma das experiências-limites que os poemas da falha tentam capturar é aquela do momento da morte do corpo e da recusa da visão última como em J465/F591:
O corpo conserva aqui sua função de tradutor, agora entre a consciência da persona e a finitude do mundo das coisas. Mas, enquanto o corpo é traduzido, a sintaxe do poema tende a confundi-lo com as coisas através da inversão da relação de agência como no verso “Os Olhos em volta – tinham-nos torcidos –” (The Eyes around – had wrung them dry –). A analogia inicial entre os olhos das pessoas que assistem a cena de agonia e os panos ensopados e torcidos, torna-se identificação dos panos às mãos. De mesma maneira as janelas não “se fecham", segundo a metáfora banal dos olhos “janelas da alma”. Elas “falham”, esta falha destacando um mecanismo ou uma função orgânica. A função ou o mecanismo pode ser apenas aquele da transparência do vidro (Emily aqui trata a “disposição” como um mecanismo). Assim, a opacificação da tradução corporal da consciência é que se destaca nesse momento do cinestésico “zumbido azul” da mosca, da interposição do fato da corrupção da carne, entre a persona e a glória da imortalidade (a chegada do Rei é uma imagem comum da piedade mortuária). Tradutor das possibilidades poéticas na atualidade das personæ dos poemas ao ser traduzido ele mesmo nas sílabas vivas escritas e proferidas, o corpo em ED revela um paradoxo complexo que diz respeito à identidade da persona. Enquanto liga a alma à promessa paradisíaca na Visão para assegurar a identidade interior “real” do sujeito, o corpo testemunha que no êxtase epifânico a persona ultrapassa um limite ou se engana com uma vã ilusão, o que, precisamente, ameaça sua identidade. Enquanto sustenta o poder do Veto ao denunciar a ficção e ao celebrar o valor e a consistência do mundo comum, testemunha com violência a dor de não poder sustentar o que implica a moradia na “Possibilidade”, tendo (J65/F466) :
Finalmente, devemos desmentir em parte a semelhança postulada no início entre os dois maiores poetas americanos do século 19. Emily não faz uma repartição tão clara quanto Whitman entre ser um poeta do corpo e enxertar os prazeres do paraíso e ser um poeta da alma e traduzir numa língua nova as dores do inferno. Poderíamos dizer que o lugar particular do corpo na sua poesia faz que a própria tradução, numa língua nova, das promessas duvidosas do paraíso celeste que tocam a “fixação” da alma ao corpo gera o enxerto das “dores do inferno” na experiência poética. É o preço que paga a “Rainha do Calvário”, como Emily gostava de se chamar, para gozar do paraíso bem mais real de seu trabalho de escrita. 1 O texto em português é do autor. Poemas traduzidos ou re-traduzidos do inglês pelo autor com a colaboração da Profa. Dra. Olga MMC Souza Soubbotnik. Quando um poema já existe em português, a fonte é mencionada em nota para o leitor ter a oportunidade de comparar as versões. 3 Apesar de Matthiessen não incluir Emily na sua American Renaissance. 4 A comparação encontra-se em Shira Wolosky, “Emily Dickinson: being in the body”, in Wendy Martin (ed.), The Cambridge Companion to Emily Dickinson, Londres, Cambridge University Press, 2002, p. 129. 5 Ralph Waldo Emerson, Nature (1836), Essays and Lectures, New York, The Library of America, 1983, p. 20. 6 Outra versão: Nuno Vieira de Almeida (org.), Emily Dickinson. Poemas e Cartas, trad. Nuno Júdice, Lisboa, Cotovia, 2000, p. 149. 7 Outra versão: N. Júdice, op. cit., p. 81. 8 Ralph W. Emerson, op. cit., p. 48. 9 Veja a tese de Robert Weisbuch: Emily Dickinson’s Poetry, Chicago, The University of Chicago Press, 1975. 10 Carta 319 do 9 de Junho 1866 a Higginson. 11 Outra versão: Emily Dickinson, Alguns Poemas, trad. José Lira, São Paulo, Editora Iluminuras, 2006, p. 303. 12 Citado em Richard Benson Sewall, The life of Emily Dickinson, (2 v.) New York, Farrar, Straus and Giroux, 1974, fac-simile in 1 vol., Harvard University Press, 1994, p. 675. 13 Veja Weisbuch, op. cit., p. 1-2. 14 Outra versão: José Lira, op. cit., p. 269 (Lira traduz apenas a primeira estrofe). 15 Mencionada em Weisbuch, loc. cit. 16 Outra versão: José Lira, op. cit., p. 267. ___________________________________________________ - Auteur : Michael A. Soubbotnik - Universidade Paris-Est, EA 4120 LISAA (Littératures, Savoirs et Arts)
- Titre : Corpo tradutor, corpo traduzido em Emily Dickinson - Date de publication : 12-09-2011 - Publication : Revue Silène. Centre de recherches en littérature et poétique comparées de Paris Ouest-Nanterre-La Défense - Adresse originale (URL) : http://www.revue-silene.comf/index.php?sp=comm&comm_id=70 - ISSN 2105-2816 |